quinta-feira, 13 de agosto de 2015

ORGIA ou de como os corpos podem substituir as ideias, por Ronaldo Serruya

O ator, diretor e dramaturgo Ronaldo Serruya conta em um texto exclusivo para o nosso blog sobre a montagem ORGIA ou de como os corpos podem substituir as ideias, novo espetáculo do Teatro Kunyn, que leva o público por um passeio sensorial pelo Parque Trianon.

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Deriva

A nova peça do Teatro Kunyn, ORGIA ou de como os corpos podem substituir as ideias é baseada nos diários íntimos de Túlio Carella, diretor e dramaturgo argentino que em 1960, cansado do clima de instabilidade política em Buenos Aires e do conservadorismo no ambiente cultural, aceita o convite para lecionar teatro na Universidade Federal de Pernambuco. Em seu um ano passado em Recife, Túlio se entrega à “solaridade” nordestina, descobre-se atraído pelos homens e se lança à experiência dos sentidos, narrando em detalhes suas derivas eróticas pelo submundo recifense. O que se lê é o triunfo do corpo sobre a retórica, um intelectual que se permite viver uma inesperada “segunda juventude”, uma jornada do herói, profundamente política e revolucionária, com a força de um Genet dos trópicos.

O desafio do Teatro Kunyn, ao se inspirar livremente nos relatos homoafetivos de Túlio para construir a dramaturgia de sua nova peça ORGIA ou de como os corpos podem substituir as ideias, é antes de tudo, tentar transpor para a cena a fisicalidade dos textos do argentino, e também o caráter sensorial que existe nessa jornada, nessa existência. Há na palavra escrita de Túlio uma carnalidade, uma corporificação potente que muito combina com a palavra na cena. Mas o livro é principalmente o relato íntimo e corajoso de um homem de meia idade que de alguma forma reflete sobre novas políticas do afeto, escancarando que talvez, já na época vivíamos afetivamente dentro de padrões mortos, equivocados, que não sintonizavam finamente com nossas pulsões de vida.

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Isso aconteceu em 1960, em seguida veio a ditadura militar, uma espécie de interdição política, mas também uma interdição da moral, do desejo, do corpo. De lá pra cá tudo que aconteceu foi mais desse mesmo caminho, uma pá de cal atrás da outra nos movimentos sutis do corpo e espíritos livres que se desenhavam no período em vários cantos do mundo. Infelizmente o mundo só empobreceu desde então, se o analisarmos sobre esse ponto de vist. É sobre isso que se ambiciona falar nesse trabalho, usando como referência a jornada de um homem para dentro de si, do seu corpo e de sua poética social.

E isso diz respeito a todos nós, porque afetivamente carregamos uma herança pesada, que não mais nos cabe, mas que arrastamos em nossas posturas hipócritas, nossos arremedos toscos e pactos afetivos caducos ao invés de assumirmos nossas potências múltiplas num país contraditório que goza de uma reputação de ser libidinoso e bem resolvido no mundo, mas que cada vez mais se revela conservador e moralista em seu comportamento de fato e estado. Tempos sombrios estes, e é de sol que queremos falar, de uma terra do fogo perdida lá dentro de nós, ardente, uma terra de alteridade, amoral, plena e potente. Nosso espetáculo acontece, tendo esse sol mítico como testemunha, num dos parques mais emblemáticos da maior cidade da América do Sul, o Trianon.

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Dividida em três atos, cada um deles evidenciando sensações e sabores distintos: uma festa de despedida, a deriva propriamente dita que acontece através de um áudio tour e um final que interdita aquilo que Tulio vislumbra e descortina em seus diários, a peça é um convite para que nos lancemos numa aventura, ora compartilhada, ora solitária, ora testemunhada, para abrirmos nossos olhos para o entorno, a cidade e nos saibamos um pouco estrangeiros, olhando de novo o que talvez já tenhamos visto e não percebemos, anestesiados que estamos pelo cotidiano. Que venham os raios dessa “solaridade” escancarada que faz do Brasil esse “país da brasa”.

ORGIA ou de como os corpos podem substituir as ideias

Em cartaz até 30 de agosto no Parque Trianon. De sexta-feira a domingo às 15 horas. Ingressos gratuitos. É necessário fazer reserva pelo telefone (11) 94151-3055.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

O Taxidermista, por René Piazentin

Essa semana o dramaturgo e diretor René Piazentin fala, em mais um texto exclusivo para o nosso blog, sobre a montagem de O Taxidermista, uma fábula moderna inspirada em um fato real. O espetáculo foi um dos três contemplados na Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos do Centro Cultural São Paulo.

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Preâmbulo – O trabalho dramatúrgico dentro da Cia dos Imaginários e O Taxidermista

Me agrada uma dramaturgia que contemple a possibilidade de alguma fissura no real. Essa fissura pode ser a construção de um universo específico – como no Beckett de Fim de Partida – ou no estabelecimento de um quadro aparentemente realista invadido por circunstâncias absurdas – como no Rinoceronte de Ionesco. Nos trabalhos que dirigi até aqui na Cia dos Imaginários o tratamento do texto final, ou do roteiro do espetáculo, caminhou em paralelo com a encenação, na medida em que ela determinava opções textuais e/ou o texto ou roteiro prévio já apontava caminhos da futura posta em cena. De qualquer forma, este elemento de fissura é recorrente: seja na teatralidade não ilusionista do uso do espaço cênico, seja no campo do conflito, do enredo ou no mesmo registro de interpretação.

Os limites do realismo não são necessariamente negativos: me parece uma questão de estabelecer claramente qual o jogo que se quer jogar e quais as regras específicas desse jogo. O jogo que costumo propor nos espetáculos que desenvolvemos até aqui tem suas regras definidas por outros limites, que contemplam a figura do narrador, a transposição direta de material literário sem adaptação (quando nosso ponto de partida foram obras pré existentes) e o uso de signos assumidamente não realistas na construção das personagens e na definição do espaço da ação. Este foi o norte com os espetáculos Quixote e Niklasstrasse, 36, que tiveram Cervantes e Franz Kafka como pontos de partida, respectivamente.

Uma Alice Imaginária e Sobre a Tempestade correspondem a uma fronteira em meu trabalho dramatúrgico: nessas duas peças, partimos de um referencial pré existente (o obra de Carroll e a peça de Shakespeare, respectivamente) para construir outro texto, autônomo em certa medida, mas que ainda guarda relação com o original. E é na sequência deste processo, iniciado em 2007, que surge O Taxidermista.

O Taxidermista – texto

O ponto de partida para O Taxidermista foi uma matéria real sobre um zoológico na região das Cisjordânia onde seu diretor passou a empalhar os animais que morriam, a maior parte vítima de balas perdidas, bombas de gás ou do stress causado pelos combates nos arredores. Um veterinário que se torna taxidermista de forma autodidata em meio a uma região de conflito me pareceu, desde o início, quase uma personagem saída da obra de Garcia Márquez: como um Aureliano Buendia fazendo seus peixinhos de ouro depois do adeus às armas.

O Taxidermista

Dr. Sami Khader é uma personagem real, que depois descobri ter inspirado documentários e livros sobre seu zoológico em Qalqilya. Algumas das fotos dos animais taxidermizados por ele revelam ao mesmo tempo um aspecto grotesto e sublime: a tentativa de perpetuar um pouco daquilo que a morte levou. Como Aureliano, ele também faz de uma ação absurda um modo de se insurgir contra o desespero.

O que me atraiu nesta matéria sobre o Zoo de Qalqilya é que a realidade, em si, já abria suas próprias fissuras. Mas o que poderia ser um zoológico de animais empalhados, para além do que já sabemos real? Como seria um diálogo entre o diretor deste zoológico e os animais que ele taxidermizou? Como Rudy e Brownie (nomes reais do casal de girafas empalhados pelo Dr. Khader) poderiam seguir após a morte conversando com seu “criador” em uma atmosfera onde fica a dúvida se são “reais” ou projeções dos pensamentos dele?

Neste contexto surge Lola, uma menina sem idade definida, certamente pré adolescente, que traz na mala seu cachorro morto. Ela não quer apenas que o Dr. Sharif (a personagem inspirada no Dr. Khader) taxidermize seu cachorro – ela quer aprender a fazer isso. Lola perdeu sua família em meio ao conflito e tem em Toy o único resquício de afetividade a ser preservado. Ela é, simbolicamente, uma versão do próprio Dr. Sharif. O encontro com a menina aos poucos serve para humanizar Sharif, deixando expostas camadas de afetividade de início ocultas. Jamal - antigo colega de Sharif, médico legista que passou a entregar pizzas – é o elemento do passado que retorna com a possibilidade de sair dali e começar a vida em outro lugar.

Todas as figuras do texto – as humanas, inclusive – são quase alegorias, na medida em que não houve a proposição de uma pesquisa particularizada dos conflitos do Oriente Médio, muito menos uma tomada de posição em relação à questão palestina/israelense. Assim, o que interessa em cada uma das personagens são os anseios, medos e paixões que as movem, na medida em que são afetadas por um entorno que transparece violento, a despeito de posicionamentos políticos, religiosos ou étnicos. A ação poética de Sharif/Khader frente à morte pode se encaixar, simbolicamente, em qualquer lugar do front.

Montagem

A questão da montagem aqui se instaura em paralelo com o texto. Ajustes e descobertas na dramaturgia ocorreram na medida em que a versão final revelou-se, em sala de ensaio, uma versão anterior ao que hoje considero o texto acabado. De início, a ideia era que a montagem fosse resolvida com quatro atores, revezando-se em todas as figuras do texto. Desde esse momento já havia a proposta de que através da alternância de elementos da indumentária, as “peles” fossem trocadas, resignificando cada ator. Recurso nem um pouco original, mas que no nosso contexto dialogava diretamente com o tema central da dramaturgia: a efemeridade e a transitoriedade daquilo que confere existência e identidade.

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Na busca de verticalizar essa ideia, optamos por fixar Dr. Sharif: diferente dos demais, ele testemunharia as mudanças que ocorrem em cena, mas sempre representado pelo mesmo ator. Isso nos fez perceber a necessidade de uma quinta pessoa no elenco. Por fim, decidimos que a Zebra também seria representada por uma mesma atriz, que também não trocaria de personagens ao longo da peça, potencializando sua função de narradora onisciente ao final do espetáculo.

A dinâmica do espetáculo também resultou em pequenos acréscimos de texto e na troca de lugar de uma cena. Para além das alterações naturais que inevitavelmente – por mais discretas que sejam – qualquer montagem trará a um texto previamente existente, neste caso deu-se realmente uma descoberta de que o andamento da narrativa seria melhor encaminhado dessa maneira.

Conclusão

Sempre me pareceu que o valor de um texto dramatúrgico, quando escrito e dirigido pela mesma pessoa inicialmente, só será plenamente comprovado quando despertar o interesse por si só, descolado de sua concretude cênica. Especialmente se gerar futuras montagens por outros diretores e companhias. Estar entre os três textos escolhidos no I Edital para Dramaturgias em Pequenos Formatos Cênicos do CCSP foi uma grata surpresa.

O Taxidermista
Em cartaz até 9 de agosto no Centro Cultural São Paulo. Sexta-feira e sábado às 21 horas e domingo às 20 horas. Ingressos gratuitos.