quinta-feira, 13 de agosto de 2015

ORGIA ou de como os corpos podem substituir as ideias, por Ronaldo Serruya

O ator, diretor e dramaturgo Ronaldo Serruya conta em um texto exclusivo para o nosso blog sobre a montagem ORGIA ou de como os corpos podem substituir as ideias, novo espetáculo do Teatro Kunyn, que leva o público por um passeio sensorial pelo Parque Trianon.

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Deriva

A nova peça do Teatro Kunyn, ORGIA ou de como os corpos podem substituir as ideias é baseada nos diários íntimos de Túlio Carella, diretor e dramaturgo argentino que em 1960, cansado do clima de instabilidade política em Buenos Aires e do conservadorismo no ambiente cultural, aceita o convite para lecionar teatro na Universidade Federal de Pernambuco. Em seu um ano passado em Recife, Túlio se entrega à “solaridade” nordestina, descobre-se atraído pelos homens e se lança à experiência dos sentidos, narrando em detalhes suas derivas eróticas pelo submundo recifense. O que se lê é o triunfo do corpo sobre a retórica, um intelectual que se permite viver uma inesperada “segunda juventude”, uma jornada do herói, profundamente política e revolucionária, com a força de um Genet dos trópicos.

O desafio do Teatro Kunyn, ao se inspirar livremente nos relatos homoafetivos de Túlio para construir a dramaturgia de sua nova peça ORGIA ou de como os corpos podem substituir as ideias, é antes de tudo, tentar transpor para a cena a fisicalidade dos textos do argentino, e também o caráter sensorial que existe nessa jornada, nessa existência. Há na palavra escrita de Túlio uma carnalidade, uma corporificação potente que muito combina com a palavra na cena. Mas o livro é principalmente o relato íntimo e corajoso de um homem de meia idade que de alguma forma reflete sobre novas políticas do afeto, escancarando que talvez, já na época vivíamos afetivamente dentro de padrões mortos, equivocados, que não sintonizavam finamente com nossas pulsões de vida.

Sem título

Isso aconteceu em 1960, em seguida veio a ditadura militar, uma espécie de interdição política, mas também uma interdição da moral, do desejo, do corpo. De lá pra cá tudo que aconteceu foi mais desse mesmo caminho, uma pá de cal atrás da outra nos movimentos sutis do corpo e espíritos livres que se desenhavam no período em vários cantos do mundo. Infelizmente o mundo só empobreceu desde então, se o analisarmos sobre esse ponto de vist. É sobre isso que se ambiciona falar nesse trabalho, usando como referência a jornada de um homem para dentro de si, do seu corpo e de sua poética social.

E isso diz respeito a todos nós, porque afetivamente carregamos uma herança pesada, que não mais nos cabe, mas que arrastamos em nossas posturas hipócritas, nossos arremedos toscos e pactos afetivos caducos ao invés de assumirmos nossas potências múltiplas num país contraditório que goza de uma reputação de ser libidinoso e bem resolvido no mundo, mas que cada vez mais se revela conservador e moralista em seu comportamento de fato e estado. Tempos sombrios estes, e é de sol que queremos falar, de uma terra do fogo perdida lá dentro de nós, ardente, uma terra de alteridade, amoral, plena e potente. Nosso espetáculo acontece, tendo esse sol mítico como testemunha, num dos parques mais emblemáticos da maior cidade da América do Sul, o Trianon.

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Dividida em três atos, cada um deles evidenciando sensações e sabores distintos: uma festa de despedida, a deriva propriamente dita que acontece através de um áudio tour e um final que interdita aquilo que Tulio vislumbra e descortina em seus diários, a peça é um convite para que nos lancemos numa aventura, ora compartilhada, ora solitária, ora testemunhada, para abrirmos nossos olhos para o entorno, a cidade e nos saibamos um pouco estrangeiros, olhando de novo o que talvez já tenhamos visto e não percebemos, anestesiados que estamos pelo cotidiano. Que venham os raios dessa “solaridade” escancarada que faz do Brasil esse “país da brasa”.

ORGIA ou de como os corpos podem substituir as ideias

Em cartaz até 30 de agosto no Parque Trianon. De sexta-feira a domingo às 15 horas. Ingressos gratuitos. É necessário fazer reserva pelo telefone (11) 94151-3055.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

O Taxidermista, por René Piazentin

Essa semana o dramaturgo e diretor René Piazentin fala, em mais um texto exclusivo para o nosso blog, sobre a montagem de O Taxidermista, uma fábula moderna inspirada em um fato real. O espetáculo foi um dos três contemplados na Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos do Centro Cultural São Paulo.

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Preâmbulo – O trabalho dramatúrgico dentro da Cia dos Imaginários e O Taxidermista

Me agrada uma dramaturgia que contemple a possibilidade de alguma fissura no real. Essa fissura pode ser a construção de um universo específico – como no Beckett de Fim de Partida – ou no estabelecimento de um quadro aparentemente realista invadido por circunstâncias absurdas – como no Rinoceronte de Ionesco. Nos trabalhos que dirigi até aqui na Cia dos Imaginários o tratamento do texto final, ou do roteiro do espetáculo, caminhou em paralelo com a encenação, na medida em que ela determinava opções textuais e/ou o texto ou roteiro prévio já apontava caminhos da futura posta em cena. De qualquer forma, este elemento de fissura é recorrente: seja na teatralidade não ilusionista do uso do espaço cênico, seja no campo do conflito, do enredo ou no mesmo registro de interpretação.

Os limites do realismo não são necessariamente negativos: me parece uma questão de estabelecer claramente qual o jogo que se quer jogar e quais as regras específicas desse jogo. O jogo que costumo propor nos espetáculos que desenvolvemos até aqui tem suas regras definidas por outros limites, que contemplam a figura do narrador, a transposição direta de material literário sem adaptação (quando nosso ponto de partida foram obras pré existentes) e o uso de signos assumidamente não realistas na construção das personagens e na definição do espaço da ação. Este foi o norte com os espetáculos Quixote e Niklasstrasse, 36, que tiveram Cervantes e Franz Kafka como pontos de partida, respectivamente.

Uma Alice Imaginária e Sobre a Tempestade correspondem a uma fronteira em meu trabalho dramatúrgico: nessas duas peças, partimos de um referencial pré existente (o obra de Carroll e a peça de Shakespeare, respectivamente) para construir outro texto, autônomo em certa medida, mas que ainda guarda relação com o original. E é na sequência deste processo, iniciado em 2007, que surge O Taxidermista.

O Taxidermista – texto

O ponto de partida para O Taxidermista foi uma matéria real sobre um zoológico na região das Cisjordânia onde seu diretor passou a empalhar os animais que morriam, a maior parte vítima de balas perdidas, bombas de gás ou do stress causado pelos combates nos arredores. Um veterinário que se torna taxidermista de forma autodidata em meio a uma região de conflito me pareceu, desde o início, quase uma personagem saída da obra de Garcia Márquez: como um Aureliano Buendia fazendo seus peixinhos de ouro depois do adeus às armas.

O Taxidermista

Dr. Sami Khader é uma personagem real, que depois descobri ter inspirado documentários e livros sobre seu zoológico em Qalqilya. Algumas das fotos dos animais taxidermizados por ele revelam ao mesmo tempo um aspecto grotesto e sublime: a tentativa de perpetuar um pouco daquilo que a morte levou. Como Aureliano, ele também faz de uma ação absurda um modo de se insurgir contra o desespero.

O que me atraiu nesta matéria sobre o Zoo de Qalqilya é que a realidade, em si, já abria suas próprias fissuras. Mas o que poderia ser um zoológico de animais empalhados, para além do que já sabemos real? Como seria um diálogo entre o diretor deste zoológico e os animais que ele taxidermizou? Como Rudy e Brownie (nomes reais do casal de girafas empalhados pelo Dr. Khader) poderiam seguir após a morte conversando com seu “criador” em uma atmosfera onde fica a dúvida se são “reais” ou projeções dos pensamentos dele?

Neste contexto surge Lola, uma menina sem idade definida, certamente pré adolescente, que traz na mala seu cachorro morto. Ela não quer apenas que o Dr. Sharif (a personagem inspirada no Dr. Khader) taxidermize seu cachorro – ela quer aprender a fazer isso. Lola perdeu sua família em meio ao conflito e tem em Toy o único resquício de afetividade a ser preservado. Ela é, simbolicamente, uma versão do próprio Dr. Sharif. O encontro com a menina aos poucos serve para humanizar Sharif, deixando expostas camadas de afetividade de início ocultas. Jamal - antigo colega de Sharif, médico legista que passou a entregar pizzas – é o elemento do passado que retorna com a possibilidade de sair dali e começar a vida em outro lugar.

Todas as figuras do texto – as humanas, inclusive – são quase alegorias, na medida em que não houve a proposição de uma pesquisa particularizada dos conflitos do Oriente Médio, muito menos uma tomada de posição em relação à questão palestina/israelense. Assim, o que interessa em cada uma das personagens são os anseios, medos e paixões que as movem, na medida em que são afetadas por um entorno que transparece violento, a despeito de posicionamentos políticos, religiosos ou étnicos. A ação poética de Sharif/Khader frente à morte pode se encaixar, simbolicamente, em qualquer lugar do front.

Montagem

A questão da montagem aqui se instaura em paralelo com o texto. Ajustes e descobertas na dramaturgia ocorreram na medida em que a versão final revelou-se, em sala de ensaio, uma versão anterior ao que hoje considero o texto acabado. De início, a ideia era que a montagem fosse resolvida com quatro atores, revezando-se em todas as figuras do texto. Desde esse momento já havia a proposta de que através da alternância de elementos da indumentária, as “peles” fossem trocadas, resignificando cada ator. Recurso nem um pouco original, mas que no nosso contexto dialogava diretamente com o tema central da dramaturgia: a efemeridade e a transitoriedade daquilo que confere existência e identidade.

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Na busca de verticalizar essa ideia, optamos por fixar Dr. Sharif: diferente dos demais, ele testemunharia as mudanças que ocorrem em cena, mas sempre representado pelo mesmo ator. Isso nos fez perceber a necessidade de uma quinta pessoa no elenco. Por fim, decidimos que a Zebra também seria representada por uma mesma atriz, que também não trocaria de personagens ao longo da peça, potencializando sua função de narradora onisciente ao final do espetáculo.

A dinâmica do espetáculo também resultou em pequenos acréscimos de texto e na troca de lugar de uma cena. Para além das alterações naturais que inevitavelmente – por mais discretas que sejam – qualquer montagem trará a um texto previamente existente, neste caso deu-se realmente uma descoberta de que o andamento da narrativa seria melhor encaminhado dessa maneira.

Conclusão

Sempre me pareceu que o valor de um texto dramatúrgico, quando escrito e dirigido pela mesma pessoa inicialmente, só será plenamente comprovado quando despertar o interesse por si só, descolado de sua concretude cênica. Especialmente se gerar futuras montagens por outros diretores e companhias. Estar entre os três textos escolhidos no I Edital para Dramaturgias em Pequenos Formatos Cênicos do CCSP foi uma grata surpresa.

O Taxidermista
Em cartaz até 9 de agosto no Centro Cultural São Paulo. Sexta-feira e sábado às 21 horas e domingo às 20 horas. Ingressos gratuitos.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Teoria e Prática do Seminário de Dramaturgia do Teatro de Arena, por Paula Autran

Investigar de que maneira o Teatro de Arena, com seu Seminário de Dramaturgia, procurou refletir sobre uma pedagogia da dramaturgia capaz de enfrentar a questão de uma representação nacional e popular é o maior objetivo da escritora e dramaturga Paula Autran com o lançamento do livro Teoria e Prática do Seminário de Dramaturgia do Teatro de Arena (Dobra Editorial). Em um texto exclusivo para o nosso blog, Paula conta um pouco sobre o lançamento da sua obra.

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Teoria e Prática do Seminário de Dramaturgia do Teatro de Arena

O livro Teoria e Prática do Seminário de Dramaturgia do Teatro de Arena é resultado da minha dissertação de mestrado. Olhando para o livro agora nem dá para acreditar no tanto de trabalho que existiu entre o início dessa pesquisa e esse momento em que escrevo aqui sobre ele. Escrever sobre dramaturgia brasileira é sempre complicado, aliás escrever sobre história do teatro brasileiro é complicado pelo simples motivo de que há ainda muito a ser pesquisado. Assim, somos pioneiros e temos que ir tateando em busca de material, em busca de hipóteses. O meu ponto de partida foi a vontade de saber um pouco mais sobre a história da dramaturgia nacional e sobre a história do ensino dessa dramaturgia. Dou aulas de dramaturgia há cerca de uma década, além de ser também formada em história e jornalismo (e também me arriscar na dramaturgia). Tudo isso junto me levou à uma busca por esse assunto.

Comecei a buscar qual seria o tema do meu mestrado e vi que havia muitas possibilidades. No entanto, ao vasculhar mais de perto, vi que o buraco era bem grande. Onde buscar? O que buscar? Para se chegar a um tema de estudo o caminho a percorrer já é bastante árduo. Nessa pesquisa me deparei com muitas referências ao Seminário de Dramaturgia do Teatro de Arena. Fui, então, conversar com meu possível orientador que sem poder me dizer muito mais, me indicou que fizesse o processo seletivo da ECA. Projeto feito, prova de língua feita, prova específica feita, entrevista feita (Ufa!) finalmente fui aprovada.

Aí... começou um novo e árduo caminho: cumprir quatro disciplinas, pesquisar, entrevistar, qualificar e escrever a dissertação, tudo isso em ... 2 anos! Fiquei um pouco mais aliviada quando consegui a bolsa da FAPESP. E aí como estava tudo tão fácil eu.... engravidei do Arthur, meu primeiro filho! E agora? Pensava eu. Não vou me alongar no caso, mas só quem passou por isso tem a dimensão do esforço que foi. São dois lados diametralmente opostos com os quais temos que lidar concomitantemente: nosso lado mais racional (o estudo para o mestrado) e nosso lado mais emocional, visceral, animal (a gestação, amamentação e primeiros meses/anos de um bebê).

Muitas, muitas vezes tive certeza que não ia dar conta, mas dei. E aqui está esse livro do qual tenho muito, muito orgulho. Nele há um pedaço importante da história da dramaturgia nacional em um dos seus capítulos iniciais que reverberam até hoje em todos os âmbitos da nossa cultura: teatro, televisão, cinema. O Seminário congregava grande parte dos integrantes do teatro daquela época, aceitava gente de fora, catapultava discussões, polêmicas, debates apaixonados de um grupo de pessoas completamente devotadas ao seu ofício. Foi um local no qual a dramaturgia passou a ser o motor por meio do qual o trabalho teatral era gerado. Todos se revezavam nos diferentes papéis necessários à realização de uma peça teatral, sem que com isso a voz do dramaturgo fosse diminuída, ali partilhava-se coletivamente o trabalho individual do dramaturgo, o que não tirava dele a sua autoria, mas envolvia a todos nesse processo.

Augusto Boal, Chico de Assis, Gianfrancesco Guarnieri, Nelson Xavier, Vianinha e tantos outros tiveram ali seus primeiros encontros com a arte da escrita teatral. A pesquisa debruça-se também sobre a teoria dessa dramaturgia que se une dialeticamente à sua prática. E mostra um pouco desse processo que mudou a face do teatro no país, com reverberações em muitas outras partes do mundo. Esse livro aqui é uma tentativa de contribuir para o debate, de contribuir para clarearmos um pouco nossa história. Há nele muitos fios puxados que precisam de muitas mais mãos para que continuem sendo desvelados.

Por meu lado sigo no doutorado, agora com Arthur já com cinco anos correndo pela casa (e por todos os lugares por onde passa...) e por vezes sinto a mesma sensação de que não vou conseguir dar conta de tudo isso. Mas em certas noites, olho para esse livro aqui, olho para ele dormindo e volto cheia de coragem para meus livros, meu computador, meus estudos e intuo que em breve estarei aqui novamente contando a história de um novo livro.

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Teoria e Prática do Seminário de Dramaturgia do Teatro de Arena
De Paula Autran
Dobra Editorial
120 páginas
Preço sugerido: R$ 30, 00










quinta-feira, 25 de junho de 2015

Bonita, por Alex Araújo

No texto Bonita Empoderada, o diretor Alex Araújo, da Cia do Caminho Velho, conta detalhes da montagem Bonita, o mais novo espetáculo do grupo, que mostra a vida de Maria Bonita com seus filhos, sua sexualidade, a violência e seu amor por Lampião. Mais um texto exclusivo para o nosso blog.

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Bonita empoderada

No final de 2013 a Cia do Caminho Velho foi convidada pelo Tusp, a participar de um evento dentro da programação da I Bienal Internacional de Teatro da USP. Sendo eu amigo da Dione Carlos, e apaixonado pela escrita dela, perguntei se ela toparia participar do evento. A proposta era um experimento de 5 minutos, a partir do tema realidades incendiárias, ela escreveria e eu montaria na Cia. Ela concordou prontamente. Em menos de 24 horas me enviou o texto. Ainda um excerto, que montamos em uma semana e apresentamos na outra. Foi certeiro, mexeu com a gente, mexeu com a Dione, mexeu com o público, e ao mesmo tempo estava em consonância com o que queríamos muito falar.

Já há algum tempo procurávamos obras que falassem da mulher empoderada, de um lugar de singularidade, e que também propusesse desafios ao trabalho do ator, e aos outros criadores. Já estava tudo lá. Daí foi a Dione finalizar o texto, nos enviar e entrarmos na sala de ensaio.

A Dramaturgia da Dione não parte de um acontecimento chave gerando acontecimentos paralelos, como o faz uma estrutura tradicional. Mas sim de uma sobreposição de quadros pelas mais diversas figuras do universo do cangaço. Não há um acontecimento, mas inúmeros. Não há acontecimentos paralelos, mas recortes que se inter-relacionam, no mais das vezes de forma não causal. Numa frase simples do texto de uma ou duas linhas por vezes vemos um ator fazendo surgir alguém a rezar, lampião e ainda um vizinho que nunca mais irá voltar a cena. E assim o texto segue, até o fim.

Desta forma, se faz necessário convidar o interlocutor a entrar em contato com um sem-número de figuras, sem que se apegue demais a maioria, e ainda sem deixar que tais figuras se tornem desnecessárias a obra. Seja um cangaceiro do bando de Maria, de outro bando, a vizinha fofoqueira, a Maria antes de conhecer Lampião, o padre Cicero e por ai vai. Em Bonita vamos, voltamos, tornamos a ir, sem parar, e de novo, e de novo, tudo num tempo de um estalo, de um suspiro.

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Do ponto de vista do ator, e dos outros artistas envolvidos na encenação, a empreitada é tentar objetivar esses tempos e espaços, de fazer cada quadro existir e rapidamente, se dissolver, e gerar outro. E isso exige um ritmo, exige uma resposta rápida, exige traços fortes o bastante para serem vistos, mas que também permita serem apagados com rapidez. O texto pede que inventemos uma forma de fazê-lo existir. Cada quadro exige uma escolha do ator, sem que essa escolha solape a escolha do espectador.

Organizei o processo pensando nisso. E assim parti de dois pilares. A dramaturgia e a sensibilidade dos atores. Ensaiamos por 10 meses ao menos 16 horas semanais. Nos primeiros encontros, já com o texto memorizado os atores sentavam e o falavam para mim. Eu ouvia e estimulava que eles se ouvissem, e que ouvissem a si próprios, e também que entendessem que eu estava ali, e que era para mim que falavam. Ou para quem mais estivesse na sala de ensaio. Não há ator quando não se está no presente, futuro e passado são ficções, são só ideias. Acredito que a ideia, não cabe no palco, senão como disparador de proposições objetivas, de coisa atualizada. Tudo que se faça com a ideia para, além disso, é neurose. Tudo que está na cabeça, e não no palco, na fala, no devir não é teatro.

No segundo momento os atores fizeram o que chamamos de ateliê de cenas, criando cenas a partir do texto, e daquilo que descobriram no primeiro momento. Até que tivessem toda a peça rascunhada por eles mesmos. Meu trabalho enquanto encenador começou no terceiro momento e se ateve a dois pontos. Um em verticalizar o trabalho sensível do ator na relação com a cena e o entendimento do texto. E outro, a encenação propriamente dita, quando organizei, modifiquei e escarafunchei o rascunho dos atores a fim de encontrar uma unidade, sem perder a multiplicidade característica do texto. Também neste momento me articulei com as outras áreas criativas (Cenografia e Figurino, a Sonoplastia e a Iluminação) para que, também a partir do rascunho dos atores pudessem começar a criar.

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Na organização da sala de ensaio, outro ponto importante foi a troca com artistas parceiros. Elas aconteceram durante todo o processo. No mais das vezes na ELT, onde tínhamos como interlocutores outros artistas do Núcleo de Direção, todos ali na mesma situação, todos em processo. E a participação do Lubi, - Luiz Fernando Marques do Grupo XIX de Teatro - como coordenador deste núcleo, dialogando, sugerindo, concordando e discordando... que fez uma leitura do processo como nunca havíamos visto, entendendo onde estamos querendo chegar, e ratificando se estamos ou não no caminho certo nesta busca, dando liberdade sem se eximir. A presença dele foi crucial para o espetáculo, e para nossa pesquisa. Foi a descoberta de um grande parceiro, do qual só temos a agradecer e exaltar.

Referências

Organizamos as referências em duas partes. As que dizem respeito a trabalhos artísticos singulares. Ou seja, que trabalham notadamente com invenção. E as de cunho temático. Há uma vasta documentação sobre o cangaço na internet e em livros. Fotos, vídeos, filmes, textos acadêmicos, depoimentos de quem vivenciou aquele período, etc. Nessas duas esferas meu intuito foi bombardear os atores e as outras áreas criativas no sentido de entender a singularidade. Seja de cunho formal, seja temático.

Todos viram, leram e assistiram o que quiseram, eu indicava coisas e eles também. Mas o mais importante é que este material não era um molde, um formato a copiar, mas algo a engolir e deixar agir em si. Não para se tornarem especialistas no assunto, reiterando e divulgando o discurso que liam. Mas sim para experienciar a singularidade, seja de um posicionamento estético, seja do cotidiano do bando, seja da caatinga. A proposta era deixar que isso contaminasse a própria criação de forma indireta, ou seja, lidando com a referência de forma residual.

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Acredito que a referência não pode virar um argumento de autoridade para que os artistas a utilizem no sentido de se justificar com o que ele fez. Para explicar o porquê das escolhas que ele fez. A decisão de cada artista deve se justificar na obra, na cena, senão, foi uma má escolha. Se foi uma má escolha a responsabilidade é minha, não da referência. Sinto que isto é muito frequente hoje.

Penso que a referência serve para a gente ver que é possível, que um determinado artista, ou a própria natureza, lida com a singularidade. E se isso já foi atingido, também posso atingir. E se posso, porque não tentar? O risco do erro é constate, mas se não enfrentá-lo de que serve meu trabalho? Para mim o ator é um pensador, mas não pensa com discurso, pensa com o corpo, na relação com os olhos do outro, com a manipulação de tempo e espaço na direção do outro. Se o discurso sobrepõe isso, ele não cria. E seu pensamento fica sobrepujado ao discurso pré-existente. O que queríamos neste trabalho é a experiência, o encontro. É o que queremos. Olhar no olho, e se deixar ser olhado. Não é fácil. Mas tem que se encarar o risco, e se responsabilizar pela obra.

O cangaço após Bonita

É interessante como hoje, após este processo, como está completamente mudado o olhar que tínhamos sobre o cangaço, e sobre Maria. Como isso se ajuntou a nosso olhar, e nos mudou. E claro, não faria sentido senão tivesse mudado. Mas não que tenhamos aprendido mais discurso sobre o cangaço. Não é na direção de estar se aproximando do especialista sobre cangaço, do historiador. Mas sim o ato de se colocar neste local. De se posicionar como eles. Não nos interessa dizer o que é o cangaço. Porque ele é e não é ao mesmo tempo. O cangaço é contraditório como todos nós. E o matar para não morrer, o oprimir para não ser vítima. É enfiar a faca no bucho do santo para não ser currado pelo capeta. É negar a alcunha de coitado, de vítima, de passivo frente a culpa cristã. Não estou dizendo que eram heróis. É mais. É a profunda percepção de que heróis não existem. Não é discurso a favor, e nem contra. Não é maniqueísmo. Não pode ser maniqueísmo! O texto se encarrega disso. Por isso seguimos com ele. O trabalho do ator e de todos precisou lidar com isso. É preciso saber que só com muita humanidade se olha no olho de alguém enquanto lhe enfia a faca no bucho.

Hoje em dia é fácil jogar cangaço no Google e ver inúmeras fotos de Maria e de Lampião. E dizer: Ladrão! Assassino! Vingador! Herói! Santa! São imagens fortes, que encaixam sim em cada uma dessas afirmações, por mais contraditório que isso seja. E por isso mesmo não faz sentido replicá-las a só, e como tese.

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Sabe-se muito sobre os badulaques, sobre a indumentária, o design. Sabe-se sobre os fatos verídicos. Mas o quanto se acha de Maria bonita e Lampião em si próprio? Nasci em Campinas, moro em São Paulo, nunca fui ao nordeste, mas consigo sentir que o cangaço tem a ver comigo. Como seria o meu bando? Como eu digo não ao meu opressor. Como eu enfiaria a faca no bucho dele sabendo que seu corpo é o que há de mais sagrado e que o meu Deus está à espreita? Eu sou capaz de enfiar a faca no bucho de alguém. Todos nós somos. Temos vergonha ao se deparar com isso, mas é isso também nos faz humano. Não se trata de sair por aí matando gente. Mas de saber que há em nós inúmeras facetas. E que boa parte delas não cabem numa afirmação moralista.

Não é o cara que mata o vizinho por conta do som alto, ou de uma má encarada. No cangaço a liberdade estava em questão. Ainda assim era um assassinato. O vulgo diz Maria é má ou Maria é boa. Dizer isso, é dizer nada! A academia diz, Maria é má por conta daquilo, e Lampião é bom por conta disso. E por mais complexo que seja a tese, ainda é maniqueísmo, ainda é dizer nada! Todos somos bons e maus e mais um punhado de coisa. Todos enfiamos facas no bucho uns dos outros todos os dias. Se sentir melhor apontando o dedo para o assassino é coisa de ressentido. Ou abraçamos a contradição ou nada realmente existirá. Nada realmente fará sentido.

A história é como uma fofoca, cada um que conte como lhe aprazer. Acho que muitos escolhem contá-la do ponto de vista racional, ou até moralista. Eu conto a partir de mim. Para mim o cangaço é o ato de não aceitar do mundo a pecha de vítima. Isso não é fácil. Sobretudo quando se tem um marido fisicamente mais forte lhe agredindo. Quando se é achacado, estrupiado e aviltado. A questão é que Maria aprendeu a apontar a faca no bucho do cara e dizer bate que eu lhe arregaço! Poxa. Isso não é um empoderar-se? Até hoje a mulher é tratada como se não fosse possível, como se fosse sempre mais frágil. Quando alguém vê outro enfrentando ele entende. Eu posso! Existem inúmeras Marias no mundo. Nem todas BONITAS, mas todas podem se fazer assim. E o que falta para isso não é rímel, batom... isso o mundo já afirma, é acreditar que se tem força sim de enfiar a faca no bucho. Não é o se achar fraca, impotente, muito menos o ficar acusando a fraqueza e a impotência que seu algoz lhe imprime. É e sempre a faca no bucho.

Minha mãe teve um câncer no cérebro e vegetou no hospital por oito meses antes de morrer. Certa vez eu estava sozinho com ela, no leito e disse: - meu, se entrega. Isso só vai piorar. Abandona essa merda! Depois disso ela ainda viveu por mais cinco meses. Os médicos diziam que não passaria de três, e ela resistiu oito meses. Hoje entendo. Talvez estes oito meses tenham sido seus melhores dias. Talvez tenha sido melhor que o dia do meu nascimento, do dia em que ela se apaixonou pelo meu pai. E isso é tão certo quanto qualquer outra afirmação sobre o que aconteceu com ela. O fato é que as pessoas a visitavam e ao vê-la apodrecendo em vida, diziam: que situação, coitada. Eu acreditava, ela não. Coitada o caramba! Ela se fez viva por oito meses enquanto o edema dobrava sua cabeça de tamanho. Isso é ser heroína? Não! Bandida? Muito menos. É vida. Como é por vida que as células do corpo do nada começam a se replicar loucamente, e a gente chama isso de câncer. Maria Bonita (e o cangaço, e dada, e a caatinga, e Lampião, etc.) é isso. Vida. É como as células do câncer que de tanta vida, mata.

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Em cartaz até 7 de agosto no Espaço Parlapatões. Sextas-feiras às 23h59. Ingressos – R$ 40,00.


quarta-feira, 17 de junho de 2015

Abnegação II–O Começo do Fim, por Alexandre Dal Farra

O dramaturgo e diretor Alexandre Dal Farra aborda em um texto exclusivo o espetáculo Abnegação II – O Começo do Fim, do grupo Tablado de Arruar. A montagem faz parte de uma trilogia que se encerra no início de 2016 com a estreia da terceira parte.

Um relato pessoal

De todas as minhas peças, creio que esta seja a que mais radicalmente me propõe uma relação totalmente imprevisível com o público. A variação na recepção vai do riso ao choro, passando pelo silêncio algo atônito. Creio que isso se deva a uma certa sinceridade radical de que a peça parte, em que escolhemos não fazer nenhum tipo de concessão a qualquer suposição em relação aos efeitos que tal ou tal cena poderiam ter sobre o público.

Quando o assunto que abordamos foi definido, tive uma doença que durou cinco dias, provavelmente algum tipo de virose, que de certa forma deu o tom do meu contato com o material (a história do assassinato do ex-prefeito de Santo André do Celso Daniel): mal-estar, náusea. O meu mal-estar, no entanto, era sobretudo político. Provinha não (ou não só) da violência em si (do assassinato, etc), mas sim, do fato de que essa violência mais banal, física mesmo, do crime comum, tivesse se aproximado tanto de um contexto de luta política, da esquerda – algo muito caro para mim.

Alexandre Dal Farra - SP - 24/02/2014

É importante dizer que, se o partido em jogo fosse de direita, nada disso me causaria nenhum assombro e seria simplesmente previsível, do ponto de vista político. A direita é criminosa por definição. O capitalismo é criminoso por definição, não precisamos recorrer à frase do Brecht sobre os banqueiros. Mas em se tratando de um partido de esquerda, que teve sim diversos governos muito interessantes, com diretrizes de esquerda (como foi o caso da própria prefeitura de Santo André – diga-se de passagem, hoje ainda, eu mesmo dou aula na ELT, uma das criações mais geniais da gestão desse grande prefeito que foi o Celso Daniel), era aterrador que coisas desse gênero tivessem ocorrido. Além disso, o que me causava mal-estar era também saber que se tratava de um contexto maior, em que esse partido tomava decisões políticas, estratégicas, que se referiam ao seu movimento em direção à presidência (o assassinato de Daniel ocorreu no início de 2002, ano do pleito que elegeu Lula presidente pela primeira vez). Tratava-se do início de uma nova fase no partido, que foi desembocar no contexto atual. Sabemos que na década de noventa houve uma grande mudança de rotas no PT, que levou à saída e expulsão de muitos. Mas me parece que, aqui, o ponto determinante foi a morte de Celso Daniel, como algo que selou (não só simbolicamente) o novo caminho do partido, doravante voltado sobretudo para a disputa do poder nacional, e caminhando mais e mais para tornar-se uma espécie de PMDB populista – que é o que vemos acontecer neste momento. Ou seja, de fato, parecia ser ali o começo do fim, fim este, a que assistimos hoje.

MOSTRA - ABNEGAÇÃO II - O COMEÇO DO FIM - ANNELIZE TOZETTO/CLIX

No entanto, no espetáculo, isso tudo era só uma espécie de trampolim para algo maior, para esse horror que pulsa na peça inteira, uma espécie de camada violenta que está o tempo todo por trás, e que para mim é o que poderíamos denominar "Brasil". Esse fundo conservador, arcaico, antigo, violento, perverso, está o tempo todo ali, ameaçando tudo o que for tentar modificar as coisas. E quando é necessário esse fundo vem à tona e simplesmente resolve a situação – seja por meio de uma ditadura civil-militar, seja por meio de ações isoladas, como é o caso em jogo. Trata-se, no entanto, do mesmo impulso conservador, da mesma força que não deixa nada se alterar, e que se impõe pela violência física mesmo, quando necessário. O pior é perceber que essa força regressiva está em todos nós. Ela nos forma, não só enquanto nação, mas enquanto sujeitos que participam desse mundo. Todos nós reconhecemos o terror e, ao reconhecermos, mostramos que esse medo também está em nós, que é o medo das consequências da mudança. Sobre isso, eu gostaria de poder dizer simplesmente,  que não podemos mais ter medo. Que o que falta à esquerda é coragem, e outras coisas do gênero. Mas não posso dizer isso, justamente porque no Brasil esse tipo de medo não é totalmente infundado. Estamos falando de mortes reais, de tortura, de força bruta. Não se pode simplesmente acusar a esquerda de ser medrosa quando vemos o que ocorre com os professores no Paraná por exemplo. Talvez uma parte do PT (aquela que buscava a mudança real) tenha sido ingênua, ou tenha tido a soberba de achar que poderia mudar as coisas de dentro tão rapidamente.

Como seria se o partido tivesse tido mais calma, se tivesse simplesmente abdicado de chegar ao poder nacional com tanta rapidez? Se tivesse se mantido, nacionalmente, como oposição, enquanto se mantivesse em cidades, estados (como ocorreu em Porto Alegre, em Belém do Pará, mesmo na São Paulo da Erundina, em Santo André e em tantas outras cidades)? Talvez a história fosse hoje outra. Mas, e aqui me parece o ponto de virada, preferiu-se a busca pelo poder nacional, e isso teve um custo.


Algumas pessoas me perguntam se para mim o problema do PT é a corrupção. É claro que, como sou de esquerda, não acho que este seja o único problema do PT, e tenho clareza de que a corrupção é a ordem do capital em geral. No entanto, é preciso dizer que, a meu ver, a crítica de esquerda ao PT de certa forma abriu mão de negar a corrupção. Ao contrário, eu acho que se trata sim um problema da maior importância, em se tratando de um partido de esquerda, de um partido que quer justamente transformar essa dinâmica criminosa do capital. Como a direita tradicionalmente rouba para si a acusação de corrupção, a esquerda, me parece, tem se esquecido de que a corrupção, enquanto funcionamento primordial do capital (favorecimento próprio em detrimento do outro), é sim uma das armas que podem ajudar na desestruturação de um partido de esquerda. Esse tipo de dinâmica como que invade a própria estrutura interna do partido e pouco a pouco o coopta para o jogo do capital, para o fisiologismo. E aqui não basta o argumento de que "o capitalismo é a corrupção", que parte da esquerda repete um pouco como contra-ataque aos direitistas que gritam contra os "petralhas", etc. Cabe sim perceber que esse tipo de dinâmica anula internamente as forças de oposição e de transformação de um partido e pouco a pouco o transforma em uma máquina cega que tem como principal objetivo o próprio poder. Então, para mim, a principal questão não é a corrupção em si, mas acho que ela é um sintoma de que o partido está se tornando algo próximo aos outros partidos, de que ele está funcionando na lógica do capital, do favorecimento pessoal, etc.

Abnegação II – O Começo do Fim
Em cartaz até 10 de setembro no Armazém Cultural. Quartas e quintas-feiras às 21 horas. Ingressos - R$ 30,00.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Ilhada em Mim–Sylvia Plath, por André Guerreiro Lopes

 
O diretor e ator André Guerreiro Lopes fala, em artigo exclusivo, sobre a concepção do espetáculo Ilhada em Mim – Sylvia Plath. O texto inaugura uma nova fase do blog da Nossa Senhora da Pauta. Agora, toda a semana, um autor, diretor ou ator de uma montagem falam sobre as concepções dos seus espetáculos em artigos inéditos. Boa leitura!

Ilhada em mim- Sylvia Plath com  André Guerreiro Lopes- Fotos Wilson Melo.


Queríamos, em um novo espetáculo da Cia. Lusco-fusco, investigar os estados limites que um artista enfrenta para dar forma à sua criação, mas através de um olhar feminino, de uma artista. A dramaturga Gabriela Mellão nos propôs Sylvia Plath. O universo de Sylvia é fascinante e de uma complexidade única, concentra temas intensos como impulsos simultâneos de criação e (auto)destruição, o difícil desdobrar-se em diversos papéis sociais - artista, mulher, mãe - a relação tempestuosa e apaixonada entre o casal Sylvia e o poeta Ted Hughes. Decidimos mergulhar neste universo não de maneira biográfica, narrativa, mas criando um poema cênico de forte simbologia visual. Gabriela criou um texto aberto a partir dos escritos pessoais de Sylvia. Na encenação, busquei dar forma aos diversos impulsos internos dessa artista única, muito inspirado na força de sua poesia, que é conhecidamente auto-referente, feroz e irônica. O espetáculo é composto por diversas cenas construídas como tableaux, quadros vivos, atravessando momentos centrais da vida de Sylvia, o encontro e paixão por Ted Hughes, a criação dos poemas e a censura póstuma feita por Ted, a relação com a ausência causada pela morte do pai transposta para uma espécie de dança/ritual, a angustia existencial, o encarar a morte. Tudo é vivido pelos atores sobre um espelho d’água, o cenário aos poucos vai submergindo, há objetos relacionados à vida de Sylvia que estão congelados e vão derretendo ao longo da peça. A proposta do espetáculo é criar uma síntese poética que provoque a imaginação do espectador, através da imersão sensorial criar espaço para que ele viva uma experiência pessoal. Em nossa montagem anterior, o Livro da Grande Desordem e da Infinita Coerência, o ponto de partida foi o livro Inferno, do autor sueco August Strindberg. O cineasta Píer Paolo Pasolini escreveu que “O Inferno de Strindberg não é um livro, mas uma experiência”. Esse foi o norte daquela encenação - e de certa forma de todas as produções da Cia. Lusco-fusco - a ideia de uma experiência compartilhada. Apesar de esteticamente serem bastante diferentes, há um forte diálogo entre Ilhada em Mim e O Livro da Grande Desordem, ambos são espetáculos que buscam dar forma a estados mentais, que retratam jornadas humanas e artísticas intensas, focam o abandonar da zona de conforto, o passo para o desconhecido.


A maior preocupação na criação de Ilhada em Mim foi não reduzir a vida e obra de Sylvia Plath a um enredo esquemático, não abordá-la de forma simplista. Muitas das biografias sobre Sylvia buscam explicações para seu suicídio, ora culpam o marido, ora a relação com a mãe... Outras biografias expõem a mulher extremamente autocentrada e difícil que era. São todas versões parciais e reducionistas, e para que tentar explicá-la em uma teoria? E dado o grau da tragédia que ela e a família ao redor viveram, esse desejo de “explicá-la” me parece perverso, não é para mim material artístico. Busquei compartilhar o mistério, não resolvê-lo. Viver, junto com o público, uma experiência. Não é um espetáculo psicológico, é um espetáculo de força simbólica, usando a água como elemento articulador, representando o perigo, a asfixia, mas também um elemento de libertação, purificação, de evolução cíclica do tempo. Não me baseei nessas análises psicológicas sobre Sylvia, minha fonte foi sua obra, a força ambígua e a estrutura de seus poemas. A poesia de Sylvia fala de morte mas é plena de vida, de energia vital, é feroz, ácida, irônica, nada autocomplacente, bela e agressiva . Esses elementos estão no espetáculo, foram minha matéria prima. É um universo inesgotável, minha intenção foi a de transpor uma visão sobre esse universo para o palco, deixando espaço para o público criar junto, tirar, se quiser, suas próprias conclusões. Ou vivenciar silenciosamente, intimamente. A poesia de Sylvia, para mim, é antes de tudo mobilizadora de energias, nos tira do lugar confortável, conhecido. Diversas pessoas que nos assistiram na primeira temporada nos disseram que saíram do teatro sem palavras, mas plenas de sensações, emoções, mobilizadas, e só no dia seguinte começaram a elaborar o que experimentaram, instigadas a conhecer mais a obra poética da Sylvia. Isso para mim é a maior alegria e incentivo para continuar a fazer o tipo de teatro em que acredito. O olhar do público é muito importante nos meus espetáculos, o sentido final se forma mesmo na mente de quem assiste.

Ilhada em mim- Sylvia Plath com Djin Sganzerla - Fotos Wilson Melo.1JPG

Fundamental é a parceria com Djin Sganzerla, atriz extraordinária, capaz de um mergulho vertical profundo em seu próprio imaginário, criando uma atuação cheia de suspensões no tempo, de mistério, uma Sylvia-esfinge. Não compreendemos bem o desafio do seu olhar: “Decifra-me ou devoro-te?” Ou “Devora-me ou decifro-te?”. Ela tem uma frase de que gosto muito sobre o trabalho, diz que sua Sylvia é uma brasa de fogo, deslocando-se por aquele palco-água.

O esforço de todos os artistas envolvidos foi o de criar no palco um “surrealismo tenso”, que para mim é o termo definidor do espetáculo.

Ilhada em Mim – Sylvia Plath
Em cartaz até 14 de junho no Teatro Sérgio Cardoso. De quinta-feira a domingo às 20 horas. Ingressos – R$ 30,00.