quinta-feira, 25 de junho de 2015

Bonita, por Alex Araújo

No texto Bonita Empoderada, o diretor Alex Araújo, da Cia do Caminho Velho, conta detalhes da montagem Bonita, o mais novo espetáculo do grupo, que mostra a vida de Maria Bonita com seus filhos, sua sexualidade, a violência e seu amor por Lampião. Mais um texto exclusivo para o nosso blog.

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Bonita empoderada

No final de 2013 a Cia do Caminho Velho foi convidada pelo Tusp, a participar de um evento dentro da programação da I Bienal Internacional de Teatro da USP. Sendo eu amigo da Dione Carlos, e apaixonado pela escrita dela, perguntei se ela toparia participar do evento. A proposta era um experimento de 5 minutos, a partir do tema realidades incendiárias, ela escreveria e eu montaria na Cia. Ela concordou prontamente. Em menos de 24 horas me enviou o texto. Ainda um excerto, que montamos em uma semana e apresentamos na outra. Foi certeiro, mexeu com a gente, mexeu com a Dione, mexeu com o público, e ao mesmo tempo estava em consonância com o que queríamos muito falar.

Já há algum tempo procurávamos obras que falassem da mulher empoderada, de um lugar de singularidade, e que também propusesse desafios ao trabalho do ator, e aos outros criadores. Já estava tudo lá. Daí foi a Dione finalizar o texto, nos enviar e entrarmos na sala de ensaio.

A Dramaturgia da Dione não parte de um acontecimento chave gerando acontecimentos paralelos, como o faz uma estrutura tradicional. Mas sim de uma sobreposição de quadros pelas mais diversas figuras do universo do cangaço. Não há um acontecimento, mas inúmeros. Não há acontecimentos paralelos, mas recortes que se inter-relacionam, no mais das vezes de forma não causal. Numa frase simples do texto de uma ou duas linhas por vezes vemos um ator fazendo surgir alguém a rezar, lampião e ainda um vizinho que nunca mais irá voltar a cena. E assim o texto segue, até o fim.

Desta forma, se faz necessário convidar o interlocutor a entrar em contato com um sem-número de figuras, sem que se apegue demais a maioria, e ainda sem deixar que tais figuras se tornem desnecessárias a obra. Seja um cangaceiro do bando de Maria, de outro bando, a vizinha fofoqueira, a Maria antes de conhecer Lampião, o padre Cicero e por ai vai. Em Bonita vamos, voltamos, tornamos a ir, sem parar, e de novo, e de novo, tudo num tempo de um estalo, de um suspiro.

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Do ponto de vista do ator, e dos outros artistas envolvidos na encenação, a empreitada é tentar objetivar esses tempos e espaços, de fazer cada quadro existir e rapidamente, se dissolver, e gerar outro. E isso exige um ritmo, exige uma resposta rápida, exige traços fortes o bastante para serem vistos, mas que também permita serem apagados com rapidez. O texto pede que inventemos uma forma de fazê-lo existir. Cada quadro exige uma escolha do ator, sem que essa escolha solape a escolha do espectador.

Organizei o processo pensando nisso. E assim parti de dois pilares. A dramaturgia e a sensibilidade dos atores. Ensaiamos por 10 meses ao menos 16 horas semanais. Nos primeiros encontros, já com o texto memorizado os atores sentavam e o falavam para mim. Eu ouvia e estimulava que eles se ouvissem, e que ouvissem a si próprios, e também que entendessem que eu estava ali, e que era para mim que falavam. Ou para quem mais estivesse na sala de ensaio. Não há ator quando não se está no presente, futuro e passado são ficções, são só ideias. Acredito que a ideia, não cabe no palco, senão como disparador de proposições objetivas, de coisa atualizada. Tudo que se faça com a ideia para, além disso, é neurose. Tudo que está na cabeça, e não no palco, na fala, no devir não é teatro.

No segundo momento os atores fizeram o que chamamos de ateliê de cenas, criando cenas a partir do texto, e daquilo que descobriram no primeiro momento. Até que tivessem toda a peça rascunhada por eles mesmos. Meu trabalho enquanto encenador começou no terceiro momento e se ateve a dois pontos. Um em verticalizar o trabalho sensível do ator na relação com a cena e o entendimento do texto. E outro, a encenação propriamente dita, quando organizei, modifiquei e escarafunchei o rascunho dos atores a fim de encontrar uma unidade, sem perder a multiplicidade característica do texto. Também neste momento me articulei com as outras áreas criativas (Cenografia e Figurino, a Sonoplastia e a Iluminação) para que, também a partir do rascunho dos atores pudessem começar a criar.

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Na organização da sala de ensaio, outro ponto importante foi a troca com artistas parceiros. Elas aconteceram durante todo o processo. No mais das vezes na ELT, onde tínhamos como interlocutores outros artistas do Núcleo de Direção, todos ali na mesma situação, todos em processo. E a participação do Lubi, - Luiz Fernando Marques do Grupo XIX de Teatro - como coordenador deste núcleo, dialogando, sugerindo, concordando e discordando... que fez uma leitura do processo como nunca havíamos visto, entendendo onde estamos querendo chegar, e ratificando se estamos ou não no caminho certo nesta busca, dando liberdade sem se eximir. A presença dele foi crucial para o espetáculo, e para nossa pesquisa. Foi a descoberta de um grande parceiro, do qual só temos a agradecer e exaltar.

Referências

Organizamos as referências em duas partes. As que dizem respeito a trabalhos artísticos singulares. Ou seja, que trabalham notadamente com invenção. E as de cunho temático. Há uma vasta documentação sobre o cangaço na internet e em livros. Fotos, vídeos, filmes, textos acadêmicos, depoimentos de quem vivenciou aquele período, etc. Nessas duas esferas meu intuito foi bombardear os atores e as outras áreas criativas no sentido de entender a singularidade. Seja de cunho formal, seja temático.

Todos viram, leram e assistiram o que quiseram, eu indicava coisas e eles também. Mas o mais importante é que este material não era um molde, um formato a copiar, mas algo a engolir e deixar agir em si. Não para se tornarem especialistas no assunto, reiterando e divulgando o discurso que liam. Mas sim para experienciar a singularidade, seja de um posicionamento estético, seja do cotidiano do bando, seja da caatinga. A proposta era deixar que isso contaminasse a própria criação de forma indireta, ou seja, lidando com a referência de forma residual.

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Acredito que a referência não pode virar um argumento de autoridade para que os artistas a utilizem no sentido de se justificar com o que ele fez. Para explicar o porquê das escolhas que ele fez. A decisão de cada artista deve se justificar na obra, na cena, senão, foi uma má escolha. Se foi uma má escolha a responsabilidade é minha, não da referência. Sinto que isto é muito frequente hoje.

Penso que a referência serve para a gente ver que é possível, que um determinado artista, ou a própria natureza, lida com a singularidade. E se isso já foi atingido, também posso atingir. E se posso, porque não tentar? O risco do erro é constate, mas se não enfrentá-lo de que serve meu trabalho? Para mim o ator é um pensador, mas não pensa com discurso, pensa com o corpo, na relação com os olhos do outro, com a manipulação de tempo e espaço na direção do outro. Se o discurso sobrepõe isso, ele não cria. E seu pensamento fica sobrepujado ao discurso pré-existente. O que queríamos neste trabalho é a experiência, o encontro. É o que queremos. Olhar no olho, e se deixar ser olhado. Não é fácil. Mas tem que se encarar o risco, e se responsabilizar pela obra.

O cangaço após Bonita

É interessante como hoje, após este processo, como está completamente mudado o olhar que tínhamos sobre o cangaço, e sobre Maria. Como isso se ajuntou a nosso olhar, e nos mudou. E claro, não faria sentido senão tivesse mudado. Mas não que tenhamos aprendido mais discurso sobre o cangaço. Não é na direção de estar se aproximando do especialista sobre cangaço, do historiador. Mas sim o ato de se colocar neste local. De se posicionar como eles. Não nos interessa dizer o que é o cangaço. Porque ele é e não é ao mesmo tempo. O cangaço é contraditório como todos nós. E o matar para não morrer, o oprimir para não ser vítima. É enfiar a faca no bucho do santo para não ser currado pelo capeta. É negar a alcunha de coitado, de vítima, de passivo frente a culpa cristã. Não estou dizendo que eram heróis. É mais. É a profunda percepção de que heróis não existem. Não é discurso a favor, e nem contra. Não é maniqueísmo. Não pode ser maniqueísmo! O texto se encarrega disso. Por isso seguimos com ele. O trabalho do ator e de todos precisou lidar com isso. É preciso saber que só com muita humanidade se olha no olho de alguém enquanto lhe enfia a faca no bucho.

Hoje em dia é fácil jogar cangaço no Google e ver inúmeras fotos de Maria e de Lampião. E dizer: Ladrão! Assassino! Vingador! Herói! Santa! São imagens fortes, que encaixam sim em cada uma dessas afirmações, por mais contraditório que isso seja. E por isso mesmo não faz sentido replicá-las a só, e como tese.

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Sabe-se muito sobre os badulaques, sobre a indumentária, o design. Sabe-se sobre os fatos verídicos. Mas o quanto se acha de Maria bonita e Lampião em si próprio? Nasci em Campinas, moro em São Paulo, nunca fui ao nordeste, mas consigo sentir que o cangaço tem a ver comigo. Como seria o meu bando? Como eu digo não ao meu opressor. Como eu enfiaria a faca no bucho dele sabendo que seu corpo é o que há de mais sagrado e que o meu Deus está à espreita? Eu sou capaz de enfiar a faca no bucho de alguém. Todos nós somos. Temos vergonha ao se deparar com isso, mas é isso também nos faz humano. Não se trata de sair por aí matando gente. Mas de saber que há em nós inúmeras facetas. E que boa parte delas não cabem numa afirmação moralista.

Não é o cara que mata o vizinho por conta do som alto, ou de uma má encarada. No cangaço a liberdade estava em questão. Ainda assim era um assassinato. O vulgo diz Maria é má ou Maria é boa. Dizer isso, é dizer nada! A academia diz, Maria é má por conta daquilo, e Lampião é bom por conta disso. E por mais complexo que seja a tese, ainda é maniqueísmo, ainda é dizer nada! Todos somos bons e maus e mais um punhado de coisa. Todos enfiamos facas no bucho uns dos outros todos os dias. Se sentir melhor apontando o dedo para o assassino é coisa de ressentido. Ou abraçamos a contradição ou nada realmente existirá. Nada realmente fará sentido.

A história é como uma fofoca, cada um que conte como lhe aprazer. Acho que muitos escolhem contá-la do ponto de vista racional, ou até moralista. Eu conto a partir de mim. Para mim o cangaço é o ato de não aceitar do mundo a pecha de vítima. Isso não é fácil. Sobretudo quando se tem um marido fisicamente mais forte lhe agredindo. Quando se é achacado, estrupiado e aviltado. A questão é que Maria aprendeu a apontar a faca no bucho do cara e dizer bate que eu lhe arregaço! Poxa. Isso não é um empoderar-se? Até hoje a mulher é tratada como se não fosse possível, como se fosse sempre mais frágil. Quando alguém vê outro enfrentando ele entende. Eu posso! Existem inúmeras Marias no mundo. Nem todas BONITAS, mas todas podem se fazer assim. E o que falta para isso não é rímel, batom... isso o mundo já afirma, é acreditar que se tem força sim de enfiar a faca no bucho. Não é o se achar fraca, impotente, muito menos o ficar acusando a fraqueza e a impotência que seu algoz lhe imprime. É e sempre a faca no bucho.

Minha mãe teve um câncer no cérebro e vegetou no hospital por oito meses antes de morrer. Certa vez eu estava sozinho com ela, no leito e disse: - meu, se entrega. Isso só vai piorar. Abandona essa merda! Depois disso ela ainda viveu por mais cinco meses. Os médicos diziam que não passaria de três, e ela resistiu oito meses. Hoje entendo. Talvez estes oito meses tenham sido seus melhores dias. Talvez tenha sido melhor que o dia do meu nascimento, do dia em que ela se apaixonou pelo meu pai. E isso é tão certo quanto qualquer outra afirmação sobre o que aconteceu com ela. O fato é que as pessoas a visitavam e ao vê-la apodrecendo em vida, diziam: que situação, coitada. Eu acreditava, ela não. Coitada o caramba! Ela se fez viva por oito meses enquanto o edema dobrava sua cabeça de tamanho. Isso é ser heroína? Não! Bandida? Muito menos. É vida. Como é por vida que as células do corpo do nada começam a se replicar loucamente, e a gente chama isso de câncer. Maria Bonita (e o cangaço, e dada, e a caatinga, e Lampião, etc.) é isso. Vida. É como as células do câncer que de tanta vida, mata.

Bonita
Em cartaz até 7 de agosto no Espaço Parlapatões. Sextas-feiras às 23h59. Ingressos – R$ 40,00.


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