O dramaturgo e diretor Alexandre Dal Farra aborda em um texto exclusivo o espetáculo Abnegação II – O Começo do Fim, do grupo Tablado de Arruar. A montagem faz parte de uma trilogia que se encerra no início de 2016 com a estreia da terceira parte.
Um relato pessoal
Um relato pessoal
De todas as minhas peças, creio que esta seja a que mais radicalmente me
propõe uma relação totalmente imprevisível com o público. A variação na
recepção vai do riso ao choro, passando pelo silêncio algo atônito. Creio que
isso se deva a uma certa sinceridade radical de que a peça parte, em que
escolhemos não fazer nenhum tipo de concessão a qualquer suposição em relação
aos efeitos que tal ou tal cena poderiam ter sobre o público.
Quando o assunto que abordamos foi definido, tive uma doença que durou
cinco dias, provavelmente algum tipo de virose, que de certa forma deu o tom do
meu contato com o material (a história do assassinato do ex-prefeito de Santo
André do Celso Daniel): mal-estar, náusea. O meu mal-estar, no entanto, era
sobretudo político. Provinha não (ou não só) da violência em si (do
assassinato, etc), mas sim, do fato de que essa violência mais banal, física
mesmo, do crime comum, tivesse se aproximado tanto de um contexto de luta política,
da esquerda – algo muito caro para mim.
É importante dizer que, se o partido em jogo fosse de direita, nada disso
me causaria nenhum assombro e seria simplesmente previsível, do ponto de vista
político. A direita é criminosa por definição. O capitalismo é criminoso por
definição, não precisamos recorrer à frase do Brecht sobre os banqueiros. Mas
em se tratando de um partido de esquerda, que teve sim diversos governos muito
interessantes, com diretrizes de esquerda (como foi o caso da própria
prefeitura de Santo André – diga-se de passagem, hoje ainda, eu mesmo dou aula
na ELT, uma das criações mais geniais da gestão desse grande prefeito que foi o
Celso Daniel), era aterrador que coisas desse gênero tivessem ocorrido. Além
disso, o que me causava mal-estar era também saber que se tratava de um
contexto maior, em que esse partido tomava decisões políticas, estratégicas,
que se referiam ao seu movimento em direção à presidência (o assassinato de
Daniel ocorreu no início de 2002, ano do pleito que elegeu Lula presidente pela
primeira vez). Tratava-se do início de uma nova fase no partido, que foi
desembocar no contexto atual. Sabemos que na década de noventa houve uma grande
mudança de rotas no PT, que levou à saída e expulsão de muitos. Mas me parece
que, aqui, o ponto determinante foi a morte de Celso Daniel, como algo que
selou (não só simbolicamente) o novo caminho do partido, doravante voltado
sobretudo para a disputa do poder nacional, e caminhando mais e mais para
tornar-se uma espécie de PMDB populista – que é o que vemos acontecer neste
momento. Ou seja, de fato, parecia ser ali o começo do fim, fim este, a que
assistimos hoje.
No entanto, no espetáculo, isso tudo era só uma espécie de trampolim para
algo maior, para esse horror que pulsa na peça inteira, uma espécie de camada
violenta que está o tempo todo por trás, e que para mim é o que poderíamos
denominar "Brasil". Esse fundo conservador, arcaico, antigo,
violento, perverso, está o tempo todo ali, ameaçando tudo o que for tentar
modificar as coisas. E quando é necessário esse fundo vem à tona e simplesmente
resolve a situação – seja por meio de uma ditadura civil-militar, seja por meio
de ações isoladas, como é o caso em jogo. Trata-se, no entanto, do mesmo
impulso conservador, da mesma força que não deixa nada se alterar, e que se
impõe pela violência física mesmo, quando necessário. O pior é perceber que
essa força regressiva está em todos nós. Ela nos forma, não só enquanto nação,
mas enquanto sujeitos que participam desse mundo. Todos nós reconhecemos o
terror e, ao reconhecermos, mostramos que esse medo também está em nós, que é o
medo das consequências da mudança. Sobre isso, eu gostaria de poder dizer
simplesmente, que não podemos mais ter
medo. Que o que falta à esquerda é coragem, e outras coisas do gênero. Mas não
posso dizer isso, justamente porque no Brasil esse tipo de medo não é
totalmente infundado. Estamos falando de mortes reais, de tortura, de força
bruta. Não se pode simplesmente acusar a esquerda de ser medrosa quando vemos o
que ocorre com os professores no Paraná por exemplo. Talvez uma parte do PT
(aquela que buscava a mudança real) tenha sido ingênua, ou tenha tido a soberba
de achar que poderia mudar as coisas de dentro tão rapidamente.
Como seria se o partido tivesse tido mais calma, se tivesse simplesmente
abdicado de chegar ao poder nacional com tanta rapidez? Se tivesse se mantido,
nacionalmente, como oposição, enquanto se mantivesse em cidades, estados (como
ocorreu em Porto Alegre, em Belém do Pará, mesmo na São Paulo da Erundina, em
Santo André e em tantas outras cidades)? Talvez a história fosse hoje outra.
Mas, e aqui me parece o ponto de virada, preferiu-se a busca pelo poder
nacional, e isso teve um custo.
Algumas pessoas me perguntam se para mim o problema do PT é a corrupção.
É claro que, como sou de esquerda, não acho que este seja o único problema do
PT, e tenho clareza de que a corrupção é a ordem do capital em geral. No
entanto, é preciso dizer que, a meu ver, a crítica de esquerda ao PT de certa
forma abriu mão de negar a corrupção. Ao contrário, eu acho que se trata sim um
problema da maior importância, em se tratando de um partido de esquerda, de um
partido que quer justamente transformar essa dinâmica criminosa do capital.
Como a direita tradicionalmente rouba para si a acusação de corrupção, a
esquerda, me parece, tem se esquecido de que a corrupção, enquanto
funcionamento primordial do capital (favorecimento próprio em detrimento do
outro), é sim uma das armas que podem ajudar na desestruturação de um partido
de esquerda. Esse tipo de dinâmica como que invade a própria estrutura interna
do partido e pouco a pouco o coopta para o jogo do capital, para o fisiologismo.
E aqui não basta o argumento de que "o capitalismo é a corrupção",
que parte da esquerda repete um pouco como contra-ataque aos direitistas que
gritam contra os "petralhas", etc. Cabe sim perceber que esse tipo de
dinâmica anula internamente as forças de oposição e de transformação de um
partido e pouco a pouco o transforma em uma máquina cega que tem como principal
objetivo o próprio poder. Então, para mim, a principal questão não é a
corrupção em si, mas acho que ela é um sintoma de que o partido está se
tornando algo próximo aos outros partidos, de que ele está funcionando na
lógica do capital, do favorecimento pessoal, etc.
Abnegação II – O Começo do Fim
Em cartaz até 10 de setembro no Armazém Cultural. Quartas e quintas-feiras às 21 horas. Ingressos - R$ 30,00.
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