quinta-feira, 6 de agosto de 2015

O Taxidermista, por René Piazentin

Essa semana o dramaturgo e diretor René Piazentin fala, em mais um texto exclusivo para o nosso blog, sobre a montagem de O Taxidermista, uma fábula moderna inspirada em um fato real. O espetáculo foi um dos três contemplados na Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos do Centro Cultural São Paulo.

Piazentin-Arquivo-pessoal

Preâmbulo – O trabalho dramatúrgico dentro da Cia dos Imaginários e O Taxidermista

Me agrada uma dramaturgia que contemple a possibilidade de alguma fissura no real. Essa fissura pode ser a construção de um universo específico – como no Beckett de Fim de Partida – ou no estabelecimento de um quadro aparentemente realista invadido por circunstâncias absurdas – como no Rinoceronte de Ionesco. Nos trabalhos que dirigi até aqui na Cia dos Imaginários o tratamento do texto final, ou do roteiro do espetáculo, caminhou em paralelo com a encenação, na medida em que ela determinava opções textuais e/ou o texto ou roteiro prévio já apontava caminhos da futura posta em cena. De qualquer forma, este elemento de fissura é recorrente: seja na teatralidade não ilusionista do uso do espaço cênico, seja no campo do conflito, do enredo ou no mesmo registro de interpretação.

Os limites do realismo não são necessariamente negativos: me parece uma questão de estabelecer claramente qual o jogo que se quer jogar e quais as regras específicas desse jogo. O jogo que costumo propor nos espetáculos que desenvolvemos até aqui tem suas regras definidas por outros limites, que contemplam a figura do narrador, a transposição direta de material literário sem adaptação (quando nosso ponto de partida foram obras pré existentes) e o uso de signos assumidamente não realistas na construção das personagens e na definição do espaço da ação. Este foi o norte com os espetáculos Quixote e Niklasstrasse, 36, que tiveram Cervantes e Franz Kafka como pontos de partida, respectivamente.

Uma Alice Imaginária e Sobre a Tempestade correspondem a uma fronteira em meu trabalho dramatúrgico: nessas duas peças, partimos de um referencial pré existente (o obra de Carroll e a peça de Shakespeare, respectivamente) para construir outro texto, autônomo em certa medida, mas que ainda guarda relação com o original. E é na sequência deste processo, iniciado em 2007, que surge O Taxidermista.

O Taxidermista – texto

O ponto de partida para O Taxidermista foi uma matéria real sobre um zoológico na região das Cisjordânia onde seu diretor passou a empalhar os animais que morriam, a maior parte vítima de balas perdidas, bombas de gás ou do stress causado pelos combates nos arredores. Um veterinário que se torna taxidermista de forma autodidata em meio a uma região de conflito me pareceu, desde o início, quase uma personagem saída da obra de Garcia Márquez: como um Aureliano Buendia fazendo seus peixinhos de ouro depois do adeus às armas.

O Taxidermista

Dr. Sami Khader é uma personagem real, que depois descobri ter inspirado documentários e livros sobre seu zoológico em Qalqilya. Algumas das fotos dos animais taxidermizados por ele revelam ao mesmo tempo um aspecto grotesto e sublime: a tentativa de perpetuar um pouco daquilo que a morte levou. Como Aureliano, ele também faz de uma ação absurda um modo de se insurgir contra o desespero.

O que me atraiu nesta matéria sobre o Zoo de Qalqilya é que a realidade, em si, já abria suas próprias fissuras. Mas o que poderia ser um zoológico de animais empalhados, para além do que já sabemos real? Como seria um diálogo entre o diretor deste zoológico e os animais que ele taxidermizou? Como Rudy e Brownie (nomes reais do casal de girafas empalhados pelo Dr. Khader) poderiam seguir após a morte conversando com seu “criador” em uma atmosfera onde fica a dúvida se são “reais” ou projeções dos pensamentos dele?

Neste contexto surge Lola, uma menina sem idade definida, certamente pré adolescente, que traz na mala seu cachorro morto. Ela não quer apenas que o Dr. Sharif (a personagem inspirada no Dr. Khader) taxidermize seu cachorro – ela quer aprender a fazer isso. Lola perdeu sua família em meio ao conflito e tem em Toy o único resquício de afetividade a ser preservado. Ela é, simbolicamente, uma versão do próprio Dr. Sharif. O encontro com a menina aos poucos serve para humanizar Sharif, deixando expostas camadas de afetividade de início ocultas. Jamal - antigo colega de Sharif, médico legista que passou a entregar pizzas – é o elemento do passado que retorna com a possibilidade de sair dali e começar a vida em outro lugar.

Todas as figuras do texto – as humanas, inclusive – são quase alegorias, na medida em que não houve a proposição de uma pesquisa particularizada dos conflitos do Oriente Médio, muito menos uma tomada de posição em relação à questão palestina/israelense. Assim, o que interessa em cada uma das personagens são os anseios, medos e paixões que as movem, na medida em que são afetadas por um entorno que transparece violento, a despeito de posicionamentos políticos, religiosos ou étnicos. A ação poética de Sharif/Khader frente à morte pode se encaixar, simbolicamente, em qualquer lugar do front.

Montagem

A questão da montagem aqui se instaura em paralelo com o texto. Ajustes e descobertas na dramaturgia ocorreram na medida em que a versão final revelou-se, em sala de ensaio, uma versão anterior ao que hoje considero o texto acabado. De início, a ideia era que a montagem fosse resolvida com quatro atores, revezando-se em todas as figuras do texto. Desde esse momento já havia a proposta de que através da alternância de elementos da indumentária, as “peles” fossem trocadas, resignificando cada ator. Recurso nem um pouco original, mas que no nosso contexto dialogava diretamente com o tema central da dramaturgia: a efemeridade e a transitoriedade daquilo que confere existência e identidade.

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Na busca de verticalizar essa ideia, optamos por fixar Dr. Sharif: diferente dos demais, ele testemunharia as mudanças que ocorrem em cena, mas sempre representado pelo mesmo ator. Isso nos fez perceber a necessidade de uma quinta pessoa no elenco. Por fim, decidimos que a Zebra também seria representada por uma mesma atriz, que também não trocaria de personagens ao longo da peça, potencializando sua função de narradora onisciente ao final do espetáculo.

A dinâmica do espetáculo também resultou em pequenos acréscimos de texto e na troca de lugar de uma cena. Para além das alterações naturais que inevitavelmente – por mais discretas que sejam – qualquer montagem trará a um texto previamente existente, neste caso deu-se realmente uma descoberta de que o andamento da narrativa seria melhor encaminhado dessa maneira.

Conclusão

Sempre me pareceu que o valor de um texto dramatúrgico, quando escrito e dirigido pela mesma pessoa inicialmente, só será plenamente comprovado quando despertar o interesse por si só, descolado de sua concretude cênica. Especialmente se gerar futuras montagens por outros diretores e companhias. Estar entre os três textos escolhidos no I Edital para Dramaturgias em Pequenos Formatos Cênicos do CCSP foi uma grata surpresa.

O Taxidermista
Em cartaz até 9 de agosto no Centro Cultural São Paulo. Sexta-feira e sábado às 21 horas e domingo às 20 horas. Ingressos gratuitos.

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